Texto de Breno Serafini publicado no Correio da APPOA

O texto 'A literatura como menta e mento na sociedade', originalmente escrito para o Fórum de Literatura ocorrido em Santiago, RS. Ele pode ser encontrado na seção Debates, p. 61, do Correio nº 204 - ago/11 - Jornada do Percurso em Psicanálise de Crianças, com acesso ao sumario pelo endereco http://www.appoa.com.br/correio.php?sec=3.

"Bebida é água! Comida é pasto!
Você tem sede de que?
Você tem fome de que?...
A gente não quer só comida.
A gente quer comida diversão e arte
A gente não quer só comida. A gente quer saída
Para qualquer parte..."
Trecho de Comida (Titãs)

Ao falar de literatura, falar de arte, falo de coisas que mexem com as pessoas, que fazem parte do cotidiano. Sim, porque a arte está em toda parte. Até os engenheiros, quando se referem a viadutos, por exemplo, referem-se a “obras de arte”. Por aí se vê o quanto o ser humano participa e interage com formas criativas e únicas que dão um colorido à existência.
Das pinturas ruprestes ao mais último projeto de design, o homem sempre correu atrás do não básico, do não essencial e, por isso mesmo, comprovadamente básico, vital. Por isso a música dos Titãs: o homem, mesmo que não saiba, não se contenta só com comida; quer mais, diversão, balet. Ouso dizer que, sem expressão artística, não seríamos nada, explodiríamos, até. Quem até hoje não se deliciou com uma paisagem, ou com a reprodução da mesma, com uma música, com um livro, com um filme, com uma animação ou com uma escultura?
As várias formas de arte estão tão amalgamadas ao nosso cotidiano que nem percebemos que aquilo ali é arte da mais especializada, rigorosa até, às vezes. Nesse caso, poderíamos incluir a publicidade, os livros didáticos etc.
Tudo que o homem põe a mão vira arte (artesanato, artesania etc.). Nesse caso, poderíamos considerá-la o bálsamo, a menta que refresca nossos dias. Mas, além disso, o engenho é que são elas. A verdadeira criação pressupõe engenho. Talvez por isso Camões tenha falado em “engenho e arte”; mais ou menos como a diferença básica entre poema e poesia.
A poesia pode estar em todas as coisas, já um poema é uma forma que até pode se fazer em poesia. Um raio de sol pousado na página em branco pode ser poesia pura, já reproduzir em palavras escritas essa imagem, pra que fique iluminada a página aos olhos (e mente) do leitor, só com muita engenhosidade. E essa engenhosidade na maioria das vezes requer muito trabalho, muito além da inspiração, transpiração. João Cabral que o diga.
Assim, além da questão da inspiração, do trabalho, temos a engenhosidade da arte. E quem são esses engenheiros da composição? Poetas, seresteiros, namorados, correi... Segundo Ezra Pound, são a “antena da raça”. Aqueles que fazem arte (ou poesia) na sua versão mais desenvolvida, mais especializada. Estes, por seu turno, nem sempre sabem se o fazem por escolha ou missão. Muitos escolheram a palavra, outros foram colhidos e/ ou tragados por ela.
Assim, muitos escritores, e vamos somente nos atermos agora aos artistas da palavra, com seu telencéfalo altamente desenvolvido e seu polegar opositor, mas, mais que isso, com a sua engenhosidade e criatividade, conseguem criar mundos paralelos que nos deliciam e nos fazem refletir sobre a nossa própria realidade. Sim, sabemos que a realidade supera a ficção, mas esta nos ajuda a refletir sobre aquela; é o seu reflexo, mesmo que distorcido, portanto passível de “verossimilhança”.
Como homenagem aos nossos irmãos de língua espanhola, tomo dois textos que servem exemplarmente ao que me refiro. Num deles, a partir da simples contagem de uma roleta de metrô, da diferença do número dos que saem para os que
entram, portanto tendo como base a matemática, descortina-se todo um universo de possibilidades de uma estrutura social subterrânea, para refletir sobre a humanidade (como no filme Subway, de Luc Besson). Noutro, a partir de um grande engarrafamento, que dura dias, é construído um microcosmo em que aparecem as sutilezas nem sempre positivas da natureza humana, principalmente em sua condição gregária. E isso sem o catastrofismo de um 1984, ou Admirável Mundo Novo, ou Fahrenheit 451, ou Laranja Mecânica, etc. O autor de que vos falo, vários já devem ter percebido, é Cortázar, com seus contos A rodovia do sul e pequeno conto de uma caderneta. Numa linguagem apurada, a narrativa nos envolve e nos faz refletir sobre a condição daqueles personagens, portanto sobre nós mesmos.
Poucos conseguem, com essa magnitude, construir, a partir de uma cena ou situação banal, uma constelação de figuras que, em sua luz própria nem sempre escolhe o caminho mais ético (ou moral), revelando nossa condição (animal).
Assim, dessa forma, aqueles conseguem criar, com inventividade, emocionando os leitores e fazendo-os refletir sobre o que leem, para chegarem a isso em muito se recolheram ao claustro da criação. Do lado brasileiro, só para citar alguns, lembro-me de Rubem Fonseca, que, em seu conto Relato de ocorrência..., faz uma síntese (brutalizada) da raça humana; outro, este o maior de todos, Machado de Assis, que fez a mais sintética fotografia da transição do Império à República brasileiros, mediada pelo sintoma escravidão (de que é exemplo Pai contra mãe), ou na crítica ao positivismo da época, como em O alienista. Não fosse a língua (portuguesa) a atrapalhar, Machado seria maior ainda.
Nesse sentido, o termo antena da raça é extremamente apropriado: aqueles que conseguem sobreviver – ou sua obra – ao tempo, ou mesmo que só foram reconhecidos tardiamente – ou postumamente – muito dedicaram de suas vidas à criação. Como disse Vinícius de Moraes, “a poesia foi para mim uma mulher cruel em cujos braços me abandonei sem remissão, sem sequer pedir perdão a todas as mulheres que por ela abandonei”.
Esses, podemos dizer, ao criarem, expuseram-se de tal forma que suas vísceras ficaram à mostra, os urubus no entorno, buscando os designos – o que lembra os antigos, que buscavam, nas entranhas dos pássaros, o futuro. Dessa forma, surgia o vate, o vaticínio. O poeta (e o escritor) mira no que viu e acerta no que não viu. Nem sempre cabe a ele a decodificação de toda a extensão de sua obra. Mas a entrega a ela geralmente é inexorável.
A palavra cobra caro a sua missão. Nesse sentido, os escritores (e os artistas de modo geral), ao exporem a sua sensibilidade revelam a sua própria fragilidade, fragilidade humana, por certo, mas, mais do que nunca, subjetiva, visceral. Aqueles que conseguem, com suas penas – e aí o duplo sentido se impõe – fazer a pena do outro, são mais que fingidores, são criadores, portanto, senão antenas, pelo menos para-raios de sua raça. Nesse sentido, põem a cara para bater, em nome da (sua) humanidade, esta sim, na maioria das vezes, um fio-terra.
É nessa confluência entre o frescor da vida (menta) e a missão, botando a cara para bater (mento), nem sempre desejada ou explícita, que a literatura (ou a arte) oferece como vítima o autor (ou artista). Ele, mais do que ninguém, sabe o quanto é humano, demasiadamente humano. Assim, como os deuses gregos, é só reflexo do que acontece à sua volta, céu estilhaçado, sem garantias de redenção: títere sem titereiro que cria outras formas também imperfeitas, portanto humanas... numa circularidade elíptica que vai juntando vida e arte, arte e vida ad infinitum.
Por último, gostaria de refletir sobre a adaptação de um texto do dramaturgo alemão Tankred Dorst, o monólogo Ich Feuerbach, ao qual tive o privilégio de assistir, em atuação do multipremiado ator gaúcho Leverdógil de Freitas, precocemente falecido. Na peça, que trata de um ator desempregado à procura de trabalho, o narrador relata que, quando menino, ao ver uma representação teatral em praça pública, maravilhado, perguntou à mãe quanto se pagava para subir ao palco, tendo a mesma respondido que não custava nada, que o público era que pagava para assistir ao espetáculo. Anos depois – continuava relatando ele –, tendo escolhido a vida de ator, descobriria muito tarde que pagaria ao teatro com a vida.

Breno Serafini é revisor de língua portuguesa da Fundação de Economia e Estatística (FEE) e doutorando em Letras pela UFRGS.

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