Providências do cada vez mais

“eis o lenho da cruz, donde passarinho se afliteia.”

Caminhava, arrastando seu zelo robusto. Em seus bolsos, mais moedas do que pano. Feitura de criança. Mordido aos três olhares de reprovação-aprendera quando de pixote. Pernas de saracura, canelas guardando asas. Fora lépido, fora atrapalhado, fora mandamentos, dos pais, do deus, das surras.

Doendo, pré-seguia dádiva de...carregava em mãos signos fortes de maldição. E representara bem, muito bem. Aliava, consigo, para si, para ela e para donde pudesse menear. Seus desejos: um. Qual? Não ter desejo algum. Desejo é vara grossa em pernas secas de moleque; marca muito, doidifica muito, doloriza tanto e...

Preferia, como pouco que parecia ser, mas como muito que era, de fato; preferia aquela cantiga velha, das manhãs ao fogo, com bule roto, com café esnobando seu gosto de felicidade. Era vazio posto que sendo repleto. Ele gostava daquelas calças curtas, a que fora presente da primeira comunhão. Ele gostava daquele ursinho, o que fora presente do deus-mínimo que lhe amarrava os lenços de guri. Ah, quanto de ternura nos dias de missa, quanto rejozigo diante do incenso em seu rosto, ascendendo aos céus o expurgo das falhas, alcançando o deleite do perdão e avançando graças ao velho-maior.

Como era fraco o seu cantar aos outros, e como revoava em seu propício ato de desmarinar a carne morta e reaver seu linho mais florido e calcular as finas gotas da chuva torta. Manhãs eram caldo de feijão. Tardes eram pêssegos no pé. Noites eram gelo na janela, luzidos de travessão. Eis um novo dia-discurso, eis um novo dia-coisa. Ei-o falando de venturas pequenas, qual epopéia de marinheiro que nunca saira do porto.

Cairá em tu, porque seu eu sempre era vivo desde-quando.

Sabia do Natal por cigarras. Elas sempre começam cantando fraco, depois em aceleramento, depois em tristeza, depois em melancolia, depois, em fim de júbilo. Apenas no Natal, ele ia para a igreja, redonda senhora do destinar dos seus da cidadezinha, para não ir à missa, mas para ir, contudo, com todo ele, até a voz moça do Glória dos anjos. E poderia haver anjas? Em 24 de dezembro, durante anos, uma anja se descia pelo teto em copa, e por volta das antes das zero horas, se fazia carne e verbo e voz.

Mentia que adorava, todavia mentia o seu não adorar. Queria, tão somente, ser vela finda, cera deslizante, carinho de flor no nariz.

Quem diria que aquele ele pudesse acorrentar bem mais do que esse ele que agora vivagueia por ruas sujas, transagarra-se a vícios. Deve ter motivo para aonde?

Certa vez, ele pensara, agora, pouco antes das moedas caírem-lhe bolso afora, pensara novamais vez.

Logo em além das três reprovações dos olhos da mãe, ele sabia do sabiamento que a mãe tinha. Receberia surra. Vara de vime, chinelo de dedo velhaco, atarraxado por prego pequeno. Ou, então, o mais em mãos da mãe, não o mais cabível à surra, nem o quão dor maior se alargasse, certamente o mais pouposo de deslocar-se. Era regra. Olhos de mãe são sempre regras. E assim por gerações.

Aqui, sabe ele: os laços eram menos educados quanto mais educação se queria propor. Aqui, sabe ele: não fossem as vergas cotidianas nas costas, seria um mau adulto, seria um mau pai, seria um mau cidadão, e acima de todo esse didatismo, seria ele um mimado.

Porquanto, sabe ele que as surras, no a cá de si; invalidas. Não que ele se tornara um adulto ruim. É que, um adulto ruim aos olhos de sua mãe; no já.

“vamo brinca de siscondê?, toda guriazadinha da rua vai tá lá!”

“e vai tê laranjinha doce da vizinha pra a gente comer?”

Ah, o poste do sempre, em frente ao boteco, o qual os “véio” canastrão fumavam em constante fumaçaria. Ele, recordará, depois, em quarto escuro de solidão solteira, da luz amarela fazendo vento em cor na sua janela. Por ora, recordara dos ovos em conserva que comia, vez e outra no boteco. Cerveja não podia, arriscava goles do martelinho do seu nono, aos domingos, dia de contemplação de gerações pouco refletivas, muito desbravadoras.

Ele era todo esperamento, era porque embugalhava-se de esquivamento.

Espalhar-se na grama era um saber precioso. Poucos conhecem do poder das rosetas nas costas, verdadeiras fadas de calmaria ao coração. Poucos entendiam do olhar vago do ele estar-se devagarzinho. Certos momentos ele era tão que se perdia.

Seria hora de abandonar-se ele-aquele? Teria exato momento de largar-se a esmo, sem o grudamento do menino? Ora, seu existir, bem-acolá encantatório permanecesse assim. As ruas estão sujas, os ventres bem mais encardidos. Talvez, se o canto dele apequenasse os desmoronamentos (dele e dos seus e dos não seus). Teria de partir, num sim à poesia dos lavamentos poéticos das lavadeiras, num sim as benzeduras anulares das não redondezas daqui, num sim ao gesto-flor do lábio de amizade (daquelas em que o morno faz-se quente somente com o silêncio), num sim às texturas de pães, num sim ao estalar da manteiga gelada em dentes puros, num sim ao rito santo do sono cedo, num sim à chita dos vestidos coloridos em festança de sagrações, num sim ao não cantar dos passarinhos em sexta-feira santa, num sim ao beijo no cristo, num SIM ao cheiro evolante de mãe.

As moedas rolaram-se pela calçada. Para os transeuntes: a anunciação da pobreza dele; para ele: a morte da sua saudade do lá.

“é pragorinha que você quer ver o sol se rosando?” “é tão bonitoso o sol lá querendo sorrir por entre os eucaliptos!”

Vida sadia, adiamento daqueles velhos sonhares. Sola de sapato gasta. Era um queremento dele sair para lá, outra vez, muitamente se espertando de que a vista era alegre, por mais que...

Ele mal vivia, seu viver era de suspiração.

“guri, teu dedo tá que um coração, vê se joga mais bola não, tá bem? você nem sabe jogar mesmo!”

O milagre. O milagre seria cio. Parto suspenso; decepando estações tão mortas que pouco se sentia do terno dos dias. O mundo tem testemunhado sem testemunhas. Ele gostaria de afincar-se na terra por uma vez mais que seja, com pés se indo por entre as carnes vermelhas da entranha- mãe. Ele gostaria de vento guapeando seus cabelos, com fios em dissipação; surgir-se-ia um desejo de ventar-se pelo mundo, sem sair do lá do mundo inteiro. A doçura seria, então, palpite de felicitações que o pequenino pé de marmelo lhe posaria na boca, quando do primeiro mujar das vacas, quando do primeiro cheiro de capim orvalhado, quando do iniciamento das pegadas das crianças em direção ao grupo escolar: sacola plástica a tiracolo, pés desnudos de calçado, mãos cheirentas de figo colhido com a aurora.

E em se passando pelos cadáveres, a meninança não perguntar-se-ia do mundo pós-lá, mas abanar-se-ia da quentura da andança. Candangueiem, como das formigas gingando sua tarefa!

Olhar folgado, de quem amansa monstros, pitando ora sonhares, pitando ora horas, pitando com a palha do milho; colheita do verão antes. Olhar manso que derrota feras no nunca usar os próprios braços. Ei-lo: o sabido olhar cansado, que adentra carnaduras, revira almas, dói posto que seja dor, calmante posto que não seja de calma: é-o satisfação em se ter, a cada dia, lua e estrelas como uma graça milagreira.

Farto, ele estava farto, dias e dias de banquetes sem gracejos. Ele tinha medo, ele tem medo no átimo depois das moedas se lhe caindo do bolso. Pouco importaria agora do antes em que escrevo aquele relampejo de dignidade que lhe tomara o pensamento, que lhe fora unha encravada nas costas. Sabia mago de ilusões miúdas, que seu pavilhão não merecia hastear-se por entre altos prédios, por entre pessoentas da rua, por entre alcoolizadas madrugadas de desespero.

Enervado pelo roubo de vida que esbofeteara seu rosto, ele: seguiria ou sentaria no meio fio da calçada da cidade podre, choraria ou alegrar-se-ia pela alegrança que teve em passear-se todo pela sua vista alegre do antes?

Ele não era o mesmo caladiço, agora, tinha voz. Precisava encontrar uma maneira de abanar essa voz e faze-la vento espalhador, precisava que as aves levassem suas sementes e fecundassem as paredes múmias.

Os ombros italianos lhe fariam companhia se ele regressasse? As mãos alemãs lhe segurariam forte diante da próxima queda se ele regressasse? E os menos amigos de lá, pregariam em seu corpo os mesmos pregos de outrora? Ter medo é ventania, gozar do medo é brisa, enfrentar o medo é chuva de janeiro, passarinhando entre as árvores para perder o fôlego.

Ficara triste, seus pais estariam, faces cansadas, diante de cartas de baralho, repartindo melancolias, melancólicos silêncios. Ao menos eles repartiam algo, além do pão caseiro no café da manhã. Família somente se utera quando da morte dos entes: caixão virado ao altar, ainda como espectador, água benta, rosas murchas regadas por lágrimas. Celebraria, ele, as brincadeiras de roda, desabadas de afeto.

No carteado, sozinhos, mesmo em dois. Protegidos e observados pelo Coração. Observados e protegidos pelos ramos bentos secos. Dia de tormenta, dia das moradas cheirarem a fogo de espantamento.

Ele; fui-me cedo demais para tardar. Nascimento.

Ele; fui-me tarde demais para cedar. Morte.

E que os anjos acenem sem pressa, grilando sussurros de vida. O reino dele era do por lá, do bem acima do saibo muito.


Felipe Freitag
feletras2007@hotmail.com
Santa Maria, RS



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